Nos últimos meses eu envelheci anos em dias e as noções de calendário, tempo e espaço foram abduzidas da minha vida. O que antes era rua, virou rio. Um rio de esgoto, com cheiro nauseante que não sai do nosso nariz. Eu, que me acostumei com os enjoos, depois de um longo tratamento de saúde, voltei a ter vontade de vomitar.
O barulho reconfortante e convidativo para uma tarde de filmes e cobertores, virou uma sirene. As milhares de horas assistindo ou lendo apocalipses da ficção serviram para preparar uma mochila: documentos, uma muda de roupa seca para cada integrante da família, corda, canivete, silvertape, garrafas de água potável, barras de cerais, mantas térmicas, galochas e as caixas de transporte dos pets. Tudo organizado para a evacuação.
Saímos, voltamos, a água foi consumida e apesar do tanto que se acumulava na rua, nem uma gota na torneira. Nem uma garrafa a venda no mercado. Papel higiênico também não havia mais e por quê talvez eu nunca entenda. Quando o caos se impõem, o medo de limpar a bunda com a mão, domina a sociedade. Sociedade, que afundava no próprio inimigo.
Resgates. Tal e qual uma zona de guerra, o barulho dos helicópteros, os barcos e jetskis circulando onde antes eu caminhava, eram os cenários das histórias que eu sempre curti. Viver elas não me pareceu tão bom assim.
Mas como em toda guerra, mulheres são violadas e as notícias de abusos acontecendo dentro de onde as pessoas deveriam se sentir seguras, foi de fato, a pior cena do roteiro. Quem me conhece, ou me lê, sabe o quanto sou avessa a finais tristes e adoro um plot twist. Foi assim que tive uma das ideias mais loucas, mas ao invés de tantas outras não escrevi — ainda irei —, e vivi a narrativa mais intensa da minha vida.
Em 48 horas montamos um abrigo para mulheres e crianças na escola do meu filho, da qual sou presidente do Circulo de Pais e Mestres. Abrigamos diversas famílias, crianças de todas as idades, meninas adolescentes, gestantes e tivemos a alegria de ter uma recém nascida, que no meio de tanto caos trouxe esperança.
O dia a dia de um abrigo é exaustivo. São tantas providências, sentimentos, pessoas diversas, vontades, egos e tretas. Compreender que não era um favor auxiliar. Chegar em casa todos os dias aos prantos, depois de ter segurado, às vezes por mais de 12 horas, as lágrimas que insistiam em nebular a visão. Eu, que gosto de transformar sentimentos em palavras, me vi sem elas. O cansaço, muitas vezes, não deixava transbordar no papel, só pelos olhos enquanto a água na rua baixava, o cheiro aumentava e a lama se tornava o novo inimigo a ser enfrentado.
Pegamos em lava jatos, como soldados pegam em fuzis. Um batalhão de mulheres, que nunca haviam se visto antes, tiraram guardas-roupas desfeitos de pá, e sorriram a cada casa limpa. Foi necessário construir cercas, banheiros, pisos. Já pegou em um martelo? Não. Ótimo, vamos lá! Mobiliar casas com o básico, garantir comida para mais de mês, ter certeza que nenhuma delas ficaria desamparada.
As violências, que não começaram nos abrigos, são constantes. Conheci mulheres sobreviventes de tantas formas que mesmo depois de perder tudo pela terceira vez consecutiva, ainda eram capazes de dar força a outras. Quem está ao teu lado nas trincheiras importa? Meu exercito mostrou que sim. E os cenários de guerra, voltaram a ser lar, ainda que a previsão do tempo e o barulho constante nos telhados continuem nos deixando em alerta.
A vida não voltou ao normal. Nem voltará. Tantas delas ainda precisam de muito. Ser indiferente não é — nunca foi — uma opção. A nossa luta é constante, pelo direito de existir, de criar nossas crianças com dignidade, de ter nossos corpos respeitados e nossas vozes ouvidas. E agora, que um teto deixou de ser sinal de proteção, ainda que pareça seguro, temos mais uma batalha pela frente. Perdemos tanto e ainda assim, nem as lágrimas, nem as chuvas, nem a falta de palavras, nos derruba. E essa narrativa, escrita há muitas mãos femininas, um dia terá um final felizes. Mesmo que leve séculos para ser reconhecida.
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